Opinião: Exposição virtual guia público pela Canudos do passado e do futuro
‘Coleção de Memórias de Canudos’ pode ser acessada online
| Fotografia 'Vestígios da cidade' revela as ruínas da antiga Canudos | Foto: Dila Reis | |
Vamos imaginar que, em um cenário sem necessidade de isolamento social, determinado espaço cultural promove uma exposição chamada ‘Coleção de Memórias de Canudos’, realizada por Dila Reis Mendes, arquiteta e urbanista, em parceria com o Instituto Popular Memorial de Canudos (IPMC). Nela, Dila reúne imagens e lembranças ligadas à história do município do norte baiano, especialmente sobre as ruínas da antiga cidade, outrora inundadas por um açude, mas que ressurgem de tempos em tempos e reavivam as memórias dos atuais moradores. O acervo está disposto em oito salas e podemos começar a explorá-lo por qualquer uma delas: ‘Reminiscências’; ‘Conselheirismo’; ‘Cartazes das Romarias’; ‘Romarias’; ‘Açude Cocorobó’; ‘Ser-tão’ e ‘Gente’.
Ao entrar na sala ‘Reminiscências’, ouvimos, ao fundo, clarinete e violão unirem-se em uma melodia suspirante. Expostas nas paredes, fotos registram detalhes da vida cotidiana: panelas penduradas, roupas e peças de carne secando nos varais, um pilão à espera de ser usado. Uma fotografia de vestígios humanos deixados pela Guerra de Canudos provoca choque, mas a imagem seguinte, com pequenas plantas despontando no solo, traz esperança. E à medida que a música avança, somos envolvidos em um espírito que mescla nostalgia, melancolia e paz.
Mesmo sem parecer, contudo, ‘Coleção de Memórias de Canudos’ é uma exposição virtual - e esse é um de seus maiores méritos. Através das imagens, das músicas que acompanham algumas das oito salas e dos depoimentos de moradores, organizados em texto e em áudio, somos transportados ao espaço de uma galeria. E além: viajamos à própria Canudos. Sentimos o balanço tranquilo do Açude Cocorobó, construído em 1969 sobre a cidade velha e sobre as lembranças da Monte Santo liderada por Antônio Conselheiro; mas também ficamos apreensivos ao ver suas águas revelarem as ruínas do local. Somos convidados a passear pelas ruas da cidade, pelas grutas do Raso da Catarina, pelas trilhas de uma Caatinga ensolarada e noturna, seca e verde, sempre viva. Ainda voltamos no tempo para participar das romarias e celebrar a fé e a resistência de seu povo.
| 'Vida': o verde desponta sobre o chão | Foto: Dila Reis | |
Ao mesmo tempo em que nos transporta a Canudos, a exposição leva a cidade ao mundo. O registro das memórias dos moradores em uma plataforma digital, acessível em qualquer parte do país, é outro mérito da obra. Esses depoimentos são fruto da pesquisa feita por Dila Reis para a obtenção do mestrado, enquanto as imagens são em parte de autoria da arquiteta, em parte originadas do acervo do IPMC. Por trazer os relatos de pessoas que viram suas casas serem inundadas pelo açude, ou cujos avós teriam conhecido Antônio Conselheiro, ou que ainda hoje militam contra os efeitos das violências sofridas ao longo dos anos, a exposição torna-se mais um instrumento de luta pela preservação da história local e nacional.
No texto de Apresentação, lemos que a obra ajuda a provocar “a subjetividade, a afetividade, a natureza social e o pensamento crítico” do público. Tem funcionado. Um depoimento postado nessa mesma página reverbera o desejo de seus organizadores: “Que as memórias das insugêncais [sic] e resistências sejam preservadas para que possam iluminar novos caminhos!”, conclama a visitante identificada como Arlene.
| No 'Alto da Favela', o solo se prostra ante o cruzeiro | Foto: Dila Reis | |
E na Canudos de Dila Reis, os caminhos levam para o futuro e para o passado, para a vontade de mudanças e para o retorno às memórias. Levam ao cruzeiro no Alto da Favela, onde as ranhuras do chão se dobram como que em reverência e adoração, e vão até as conchas deixadas para trás pelo recuo das águas do açude, lembrando à fotógrafa a profecia conselheirista de que o sertão viraria mar. Seus registros instigam os estudiosos a pesquisar a cidade e suas histórias e convidam os moradores emigrados a voltar. Na sala 'Reminiscências', um visitante não identificado, que também se embalou pela nostalgia sugerida pela exposição, declarou: “Emociona ler os comentários destas pessoas. Revejo a caatinga, revejo Canudos e sinto saudade.” Ainda que por alguns instantes, é possível dizer que essa saudade cessou.
Exposição 'Coleção de Memórias de Canudos'
Link para acesso: http://www.memoriasdecanudos.blogspot.com/
Texto: João Pedro Ramalho
1 comentários
Sem palavras ainda para processar essa crítica maravilhosa. Por enquanto só consigo dizer: muito obrigada!
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