Entrevista - Rafael Vitória conta suas inspirações para livro de poesias ‘Menino no Capinzal’

by - maio 06, 2021

 O autor também compartilha um dos poemas que compõem a obra

| Livro traz 14 poemas escritos por Rafael Vitória | Foto: Érica Ferreira |

Um percurso pela América e suas paisagens, culturas e habitantes, guiado pela força da poesia, é o que Rafael Vitória propõe em seu livro ‘Menino no Capinzal’. A obra reúne 14 poemas, inspirados pela experiência do autor como um soteropolitano radicado há 13 anos em Juazeiro-BA e Petrolina-PE. O livro tem publicação da editora Viseu e é, também, uma homenagem a Thiago de Mello, poeta natural do Amazonas que se tornou um símbolo da literatura regional e da oposição cultural à Ditadura Militar - e que completa 95 anos em 2021. Em entrevista ao Portal Culturama, Rafael Vitória conta sobre suas influências na criação de ‘Menino no Capinzal’ e ainda compartilha conosco uma das poesias que compõem a obra.

Culturama: Na sinopse do livro, você afirma que faz uma homenagem ao poeta Thiago de Mello. De que forma a obra desse artista está presente em seu trabalho?

Rafael Vitória: Primeiro pela forte representatividade em minha incipiente trajetória, sobretudo pelo impacto que a obra ‘Faz Escuro, Mas Eu Canto’ [publicada originalmente em 1966] teve e tem no meu modo de pensar a vida e, naturalmente, a construção do texto. Cresci escutando seus versos. Essa obra significa minha descoberta da poesia e, por tabela, dessa vocação inexplicável que nos faz, diuturnamente, ‘lutar com palavras’. Em suma, minhas primeiras influências de amor aos sons, aos aromas, aos rostos humanos e suas lutas vieram de Thiago. Não poderia deixar de dedicá-lo àquele que, no silêncio do norte, me ensinou a vocação cronológica dos aromas, dos sons das águas, dos troncos resilientes fincados bem no meio de nossa existência.

C: Os conteúdos que a poesia aborda sugerem uma vastidão geográfica e temática, indo dos Andes ao São Francisco. Por que a escolha de falar sobre esses temas tão diversos?

R.V.: A história da aparição desse livro se confunde com a época em que cheguei ao Vale do São Francisco. Embora natural de Salvador, me instalei na região há mais ou menos 13 anos. E com a mudança - motivada por vínculos familiares e acadêmicos -, fatalmente viriam os desafios naturais pela subsistência, pela busca de emprego e fixação na região. Paralelo a isso, era confrontado diuturnamente com uma paisagem natural e humana até então só encontrada nos ecos dos livros. 
Os textos de ‘Menino no Capinzal’ foram gestados nessa fase em que buscava um equilíbrio, um consenso entre os imperativos categóricos da vida e a verdadeira vocação pela literatura. Por um tempo, venceu o pragmatismo. Agora, parafraseando um autor conhecido, posso dar vazão ao ‘sonho’ no lugar do ‘feijão’. Os textos rememoram essa fase de difícil adaptação, os momentos de vacilação, os passos dados para trás e, finalmente, o impulso necessário à assunção da nova vida. A diferença é que o meu ‘Navegar é Preciso’ obedeceu ao movimento inverso das naus: do litoral ao sertão. Esse foi meu mar aberto, meu descobrimento, minha acumulação primitiva de capital humano. A vastidão sugerida vem, portanto, desse imaginário, dessa descoberta particular da América, pertencente mais ao campo da idiossincrasia literária do que da história.

C: Ao mesmo tempo que o livro diz percorrer a América em suas facetas, seu título aponta para algo mais local, uma imagem bucólica e situada em um espaço específico. O que o motivou a escolher ’O menino no capinzal’ como o título de toda a obra?

R.V.: O título nasceu muitos anos antes da obra. A inspiração vem da juventude e tem como mote o poema ‘Memória’, do mestre Ferreira Gullar. Posso afirmar que o ilustre maranhense está no cerne de todas as cogitações acerca do tempo que teço nos poemas. Porém, o ensinamento fundamental vem de sua concepção de poesia enquanto ato político. Não no sentido partidário, mas remetendo à ação transformadora que palavras podem provocar ao se projetarem sobre pessoas nos seus contextos de silêncio, de invisibilidade. Em suas próprias meditações: “A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalhas e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios, nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso eu quis fazer a minha poesia.”

C: Por que você acredita que a leitura do livro vale a pena?

R.V.: Difícil adentrar nas razões de fruição de um texto, sendo estas de domínio quase exclusivo do leitor. Em tempos pandêmicos, acredito que a resposta virá da própria poesia:

Companheiros de Clausuras
(por Rafael Vitória)

Nesses tempos dos candelabros
amarelados e sem mosquitos,
Das madrugadas sem seus bêbados prediletos,
sem o vulto do homem na rua
e no escuro do dia que, por hora, acabou,
Um andarilho urbano da escuridão
perscruta nas sobras de guerra,
vestígios familiares de canção e pão

Mas são os ratos,
que correm acuados pelos passos,
a migalha furtiva indiciária das fomes.

Mas são os sacos,
que dançam a trajetória imprevisível do espaço,
o simulacro fantasmagórico da liberdade sem pouso.

Mas são os astros,
que cintilam axiomas de profecias etéreas,
a nostradar um porvir esfinge devorando,
na escuridão saramaga, 
o andarilho
     no tempo
          enigma.

Sinopse

Em homenagem ao barreirinhense Thiago de Mello, o autor percorre em seus 14 poemas todos os itinerários telúricos de nossa América. Dos rios que se formam da Cordilheira dos Andes às veredas do sertão São Franciscano, do povo andino ribeirinho às moças esquecidas nas esquinas no coração do país, dos peixes que desafiam a correnteza às rasgas mortalhas e seus presságios. Lugares onde cantar é possível, em toda magreza que careça de um abraço. Não é a poetização de nada. Ao contrário, é basicamente o desencantar das coisas, pelo artifício proustiano da memória. Novos tipos, histórias familiares, trilhadas, lembradas, ausente de metáforas. É quando o mundo não existia. Este livro? Uma rês desgarrada.

Texto: João Pedro Ramalho

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