Segundas Críticas: Luta e tempo (por Juliano Varela)

by - agosto 10, 2024

Texto crítico sobre a primeira edição do projeto "Ocupação de Segunda" da Trup Errante, realizada no dia 08 de julho

| Registro da primeira edição do Ocupação de Segunda no Janela 353 | Foto: Lizandra Martins 

Segundas-feiras têm cara de recomeço, assim como as manhãs. Eu gosto das segundas e das manhãs, porque elas têm sabor de algo que desabrocha, que projeta, que nos indica um porvir. Sabe aquele suspiro que a gente dá, com um sorrisinho de satisfação no canto da boca, depois de arrumar uma nova morada e perceber que ela está prontinha para nos abraçar, tudo organizadinho e cheiroso? Esta, dentre tantas outras, é a minha segunda-feira preferida. É aquela que nos diz: bora? Foi a segunda-feira que encontrei na estreia, respeitável público, do primeiro encontro do projeto Ocupação de Segunda, da Trupe Errante, no Janela 353.

Entro e sinto o cheirinho de café com bolo no Café de Bule, huuummm... encontro amigas e amigos, ex-alunas, uma companheirada de labor feliz, cheiros no cangote e boa conversa. Peço meu expresso com leite sem açúcar e me jogo nas cheganças do povo e no desabrochar dos sorrisos largos projetados no porvir da arte.

Trajetórias e trajetórias emaranhando-se para serem transformadas em outras no tear das artes ali apresentadas. É artesania de vida em sua forma e essência mais delicada. É o tempo, sublime e impiedoso, enxarcando gentes, atuações, letras, imagens, movimentos, comidas e palavras da mais genuína poesia. Pois, quente e latejante, marcante, como os abraços que troquei naquela segunda segunda-feira de um Julho com sabor de Janeiro, com sabor de outro recomeço. É renovo de novo.

Em um “Teto Cheio de Furos”, vi mais uma vez Raphaela de Paula radiante, projetando as letras de Cátia Cardoso com um corpo dançante que pulsa sol, com um corpo-mulher-teatro que se transmuta em criança, em palhaça, em batuque de tamborete, em figurinos que se transformam, em contação de histórias, em furinhos e mais furinhos na lona do circo do céu, em noites e dias, noites e dias, noites e dias de uma artista que é puro TEATRO.

| Raphaela de Paula em cena em "Teto Cheio de Furos" | Foto: Lizandra Martins |

Na “Arte de [R]existir”, o Núcleo de Audiovisual do Sesc Petrolina escancara, poeticamente, o sentimento que tomava a classe artística petrolinense na “véspera do fim do mundo”, novembro de 2019. Revolta e desalento perante a ausência de políticas públicas culturais em Pernambuco e no Brasil, mas também a luta e a resistência de trabalhadoras e trabalhadores das artes em permanecer atuando, apesar dos pesares, para que o mundo continue vivo e com alma boa abundante. 

Em “Veredas na Entre Boca do Céu”, Antônio Pablo espalma uma ancestralidade que determina o porvir ao mesmo tempo em que explica o “estar hoje aqui enxarcado de saudades”. Para alguns, nada é fácil! A batalha por justiça não se dá exclusivamente pela crença nas leis dos homens, em sua maioria brancos, mas é algo que está, histórica e inarredavelmente, em seu destino, que no corre do dia-a-dia é amparado pela força da natureza e da espiritualidade do povo preto deste país. É o tempo ancestral enegrecendo o mundo de reza, de sabedoria e de salvação.    

A “Travessia” de Lizandra Martins me chegou como uma ode à observância da solitude daquelas e daqueles que atravessam o rio São Francisco nas barquinhas, transporte também de um tempo curto, de um tempo que nos permite a contemplação, a reflexão, a meditação, a criação quase que instantâneas... a alegria, o amor, o desamor... que nos permite estar num entre-lugar da existência humana cotidiana, estar no exato instante do agora, da decisão que urge em ser tomada e também aguardando partidas e chegadas, mas quais? Atravessando... Quais travessias nos permitem criar? 

| Sol Soares serve o Deguste Cinema e ao fundo estão fotos da exposição Travessias | Foto: Lizandra Martins |

No “Deguste Cinema”, o bolo de banana de Solange Soares, com aquele gosto gostoso de comida caseira, feita bem feitinha, devagar, atenta às quantidades para que todo mundo “lamba os lábios e peça mais”, me fez vir à lembrança a cena clássica de menino pequeno pedindo à mãe, desesperadamente, para raspar a vasilha onde foi feita a massa do bolo. Eita... como eu fiz isso. Bem bom demais!   

Em todos os trabalhos, luta e tempo. Na política, na arte, na culinária, luta e tempo. Por dignidade, por recursos, por justiça, por comida, por transporte, por educação e por arte. Memória! Não nos esqueçamos! É vida e poesia que que nos dão sentido, mas não de graça. É preciso abrir frestas, rasgar sulcos, talhar a carne. Num país injusto e violento como o Brasil, é luta e tempo o tempo todo, amalgamados numa espiral de feituras, de labores, de amores, de continuidades apesar das dores. Mas, não deixemos que nos roubem a alegria de viver. Luta e tempo também são festas, também são encontros, são artes, recomeços, manhãs e também são... segundas-feiras.

Vida longa às Ocupações de Segunda Trupe Errante!

Juliano Varela - 10 de Julho de 2024
Ator, performer e escritor. É professor de sociologia (IFSertãoPE - Campus Petrolina), onde atua com metodologia de ensino que une ciências humanas e artes. Começou no teatro estudantil em 1997, quando fazia ensino médio em Natal (RN), onde nasceu.


A série de postagens "Segundas Críticas" é publicada em uma parceria do Portal Culturama com o projeto Ocupação de Segundas Cine Raiz.

A Ocupação de Segundas Cine Raiz, é uma realização da Trup Errante, em parceria com o Café de Bule e o espaço Janela 353. Com apoio do CUTURAMA e da Colorcopy o projeto conta com o incentivo do Funcultura através do Edital Cultural Audiovisual 2022/2023 na categoria de Cineclubismo interação de linguagens.

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